quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Por favor, hoje, não me acordes



Tinha entrado naquela vida de adulto e agora nada havia a fazer. Ainda vivia em casa da mãe e era ela que o acordava todos os dias. Exactamente como fizera em tempos para o obrigar a ir à escola. Agora era o trabalho. Tinha sido ela, a mãe, a insistir: ou começas a trabalhar ou arranjas outra casa. Uma ameaça.

Quando era novo, com seis, sete anos, a ameaça tinha sido a mesma. Ele não queria ir à escola e a mãe dissera: se não fores à escola tens de encontrar outra mãe e outra casa.

Ele, claro, ficara cheio de medo. Não percebera nessa altura que a mãe nunca cumpriria a ameaça. Tinha acreditado na mãe, a mãe dizia sempre a verdade. Desde miúdo que pensava assim.

Nem passados aqueles anos todos a mãe o poria fora de casa. Queria apenas assustá-lo. Obrigá-lo a fazer qualquer coisa, a tornar-se útil: o que diriam as pessoas se soubessem que tenho em casa um filho que não estuda nem trabalha?

Em suma, tudo era igual aos tempos em que ele andava na escola; só que tinham passado vinte anos.

Nunca namorara, os amigos eram poucos, as saídas nocturnas raras.

O dia começava sempre com a mãe a entrar no quarto, acordando-o. Ela afastava os cortinados e dizia: é preciso deixar entrar luz.

Naquela noite ele decidiu matar-se. A meio da noite pegou na caixa de comprimidos e tomou os suficientes. Deixou apenas um recado escrito, com o papel preso do lado de fora da porta do quarto. O recado dizia:

por favor, hoje, não me acordes.

Mas talvez não tenha tomado os comprimidos suficientes. O certo é que na manhã seguinte, com mais esforço, mas mesmo assim com eficácia, a mãe acordou-o.

Ela havia entretanto rasgado aquele bilhetinho ridículo. E depois havia dito algo de que ainda hoje, ele, o filho, não conseguia perceber por completo o sentido.

– Tens de acordar – dissera-lhe a mãe – não temos alternativa.

domingo, 16 de novembro de 2008

C h a r a d a



Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, Espécie de acessório ou sobressalente próprio, Arredores irregulares da minha emoção sincera, Sou eu aqui em mim, sou eu. Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente, Como de um sonho formado sobre realidades mistas, De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico, Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida. Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo — A impressão de pão com manteiga e brinquedos De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina, De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela, Num ver chover com som lá fora E não as lágrimas mortas de custar a engolir. Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado, O emissário sem carta nem credenciais, O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, A quem tinem as campaínhas da cabeça Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo
, a charada sincopada Que ninguém da roda decifra nos serões de província. Sou eu mesmo, que remédio! ...

Álvaro de Campos